16 de setembro de 2024

Em entrevista à Fórum, a antropóloga Carla Cristina Garcia afirma que as organizações esportivas ainda são “profundamente misóginas”

Por Marcelo Hailer
Publicado pelo portal Fórum, em 01/08/2024

(Reprodução/ Frame/ YouTube/ The Economic Times)

Os Jogos Olímpicos de Paris foram novamente marcados por polêmicas envolvendo questões de gênero e sexualidade. O primeiro conflito ocorreu na abertura das Olimpíadas 2024 devido à encenação dos quadros “O Banquete dos Deuses”, de Jan van Bijlert, e “A Festa dos Deuses”, de Giovanni Bellini, que foram confundidos com uma suposta releitura da obra “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. A performance foi protagonizada por artistas LGBT+, o que despertou a fúria dos fundamentalistas.

O segundo incidente ocorreu nesta quinta-feira (01), durante a luta de boxe entre Angela Carini (Itália) e Imane Khelif (Argélia). O embate durou 46 segundos, pois a italiana desistiu da luta. A partir daí, uma onda de discurso de ódio contra atletas transexuais foi direcionada a Khelif, que é uma mulher cis.

Mas por que se disseminou a mentira de que Imane Khelif era uma mulher trans e que sua oponente desistiu em protesto? Tudo começou alguns dias antes, com uma entrevista de uma ministra do governo de Giorgia Meloni, a responsável pela pasta da Família, Eugenia Roccella, que acusou a atleta argelina de “se disfarçar de mulher”.

“É muito preocupante saber que, durante os Jogos Olímpicos de Paris, duas pessoas trans foram admitidas nas competições de boxe feminino, que são homens que se identificam como mulheres, e que, em competições recentes, foram excluídos”, declarou a ministra um dia antes da luta entre Carini e Khelif.

A outra atleta mencionada pela ministra é a taiwanesa Lin Yu-ting, que, assim como Khelif, foi reprovada no “teste de gênero” aplicado pela Associação Internacional de Boxe (IBA). Cabe destacar que essa entidade foi suspensa pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) justamente por discordância quanto ao teste em questão.

Diante dos ataques contra Khelif, o COI se manifestou em sua defesa. O Comitê afirmou que tomou conhecimento de “informações enganosas sobre duas atletas femininas competindo nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. As duas atletas competem em competições internacionais de boxe há muitos anos na categoria feminina, incluindo os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, o Campeonato Mundial da Associação Internacional de Boxe (IBA) e torneios sancionados pela IBA”.

O Comitê Olímpico da Argélia também defendeu sua atleta. “Denunciamos com a maior firmeza os ataques maliciosos e antiéticos dirigidos contra nossa ilustre atleta Imane Khelif por alguns meios de comunicação estrangeiros. Estas tentativas de difamação, baseadas em mentiras, são completamente injustas, especialmente num momento crucial em que ela se prepara para os Jogos Olímpicos, o auge de sua carreira”, declarou o órgão argelino.

O mundo dos esportes, a eugenia e a transfobia

Os ataques contra a boxeadora argelina Imane Khelif são violentos e transfóbicos e trazem à tona uma questão de profunda importância: a existência dos chamados testes de gênero (ou de feminilidade) e a exclusão de pessoas transexuais das competições esportivas, olímpicas ou não.

O teste de feminilidade foi instituído nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, auge das teses eugenistas que embasavam o nazismo. À época, as atletas eram obrigadas a tirar a roupa e se submeter a uma análise de suas respectivas genitálias para que os médicos verificassem se a atleta era “uma mulher de fato”. 

Um dos principais argumentos utilizados para excluir mulheres trans das competições é que, por causa da testosterona, elas teriam vantagens sobre suas oponentes. No entanto, estudo publicado em abril deste ano pelo Canadian Centre for Ethics in Sport (CCES) afirma que não há evidência científica que comprove que mulheres trans tenham alguma vantagem e que os fatores que determinam o desempenho de uma atleta são a nutrição e a qualidade de treinamento.

Foram analisados pelo estudo do CCES toda a literatura científica sobre a questão das mulheres trans nos esportes, em língua inglesa, entre 2011 e 2021. De acordo com o relatório, nenhum dos trabalhos apresentava investigações empíricas que comprovassem uma suposta vantagem das atletas trans. Porém, elas ainda continuam banidas.

Para entender quais mecanismos sustentam este regime no mundo dos esportes, a Fórum conversou com a pesquisadora e antropóloga Carla Cristina Garcia (PUC-SP), que possui uma vasta produção sobre as questões de gênero e sexualidade.

“As organizações esportivas, de maneira geral, continuam sendo profundamente machistas e profundamente heteroterroristas, e o cunho eugenista continua […] elas continuam fazendo essa distinção absoluta entre desempenho de corpos masculinos e desempenho de corpos femininos”, afirma a pesquisadora Carla Cristina Garcia.

Confira a seguir a íntegra da entrevista:

Fórum – Por que então as organizações esportivas seguem com os tais testes de feminilidade?

Carla Cristina Garcia – Eu acho que as organizações esportivas, de maneira geral, continuam sendo profundamente machistas e profundamente heteroterroristas, e o cunho eugenista continua. Eu acho que essas ideias a respeito da biologia como destino continuam, na maior parte das bases epistemológicas das pesquisas científicas de desempenho esportivo, e as organizações esportivas continuam fazendo essa distinção absoluta entre desempenho de corpos masculinos e desempenho de corpos femininos.

Talvez seja uma das organizações mais binárias em termos gerais. É tudo separado, cada um tem um desempenho, e o teste de testosterona, para provar se alguém é homem ou se alguém é mulher, continua sendo determinante na hora de decidir em que equipe uma pessoa deve desempenhar, enfim, o seu esporte.

As organizações esportivas continuam sendo profundamente binárias, machistas e eugênicas.

Fórum – A ideia de força e desempenho ainda está vinculada a um ideal biológico de homem e mulher?

Carla Cristina Garcia – O desempenho vinculado à biologia continua determinando a maior parte dos esportes. E não só dos esportes, você ainda tem uma ideia de desempenho físico e profissões no mundo do trabalho que também impedem que muitas mulheres consigam emprego que se supõe que só homens possam desempenhar.

Ainda há um preconceito muito grande no sentido de pensar que os corpos femininos são mais frágeis que os masculinos e esse mito continua sendo alimentado. Mesmo aquilo que não está vinculado às organizações esportivas, desempenho físico e biologia continuam determinando, inclusive, lugares no mundo do trabalho dos corpos considerados masculinos e considerados femininos.

Fórum – O Teste de Feminilidade foi criado em 1936 na Olimpíada de Berlim. Estamos diante de uma herança nazista e tudo o que esta acarreta no entendimento sobre homens, mulheres e raça?

Carla Cristina Garcia – Sim, esse teste de feminilidade é uma herança nazista, e não só nazista, eugênica, eu quero insistir, justamente porque na Olimpíada de 36 é quando a gente está no auge da ideia da raça pura, alemã, dos testes de raça, de todos os mitos científicos, então sim, a gente continua tendo esse mesmo pressuposto, o pressuposto nazista do corpo perfeito, que vai ser sempre o do homem branco adulto, e sim, os desempenhos vão estar vinculados a essa ideia eugênica de corpos binários e das raças superiores e inferiores.

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